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Entrevista: Francisco Lacerda

O Mestre do Azoresploitation

Francisco Lacerda é um realizador e argumentista açoriano cujo percurso único e audacioso tem deixado a sua marca no panorama do cinema alternativo. Nascido nos Estados Unidos, cresceu e viveu grande parte da sua vida em São Miguel, Açores, antes de se fixar na Finlândia. Apesar da distância, o seu vínculo com os Açores permanece forte, e é nas suas visitas à ilha que Francisco aproveita para realizar os seus filmes, impregnados de referências culturais açorianas.

Ao longo da carreira, Lacerda desenvolveu um estilo cinematográfico singular, inspirado no cinema exploitation italiano e americano, marcado por uma estética irreverente e uma narrativa provocadora. As suas influências passam por ícones do género, como Lucio Fulci e Lloyd Kaufman, mestres do terror, do gore e do humor negro.

O realizador também é creditado como o criador do conceito de “Azoresploitation”, um subgénero que define o seu cinema de género filmado nos Açores. Nesta abordagem única, Francisco integra elementos culturais e paisagísticos açorianos em histórias de terror, comédia, thrash e fantasia, criando um imaginário cinematográfico distintivo, onde o insólito e o grotesco se misturam com o cenário idílico das ilhas.

A sua ousadia criativa e autenticidade têm sido amplamente reconhecidas. Com 11 prémios e 37 nomeações em festivais de cinema nacionais e internacionais, Francisco Lacerda já marcou presença em prestigiados certames como SlamDance, CinEuphoria, Florida Film Festival, Boston Underground Film Festival, Hysteria Fest e MotelX.

Com uma filmografia que foge às convenções e celebra o cinema de culto, Francisco Lacerda mantém-se como uma figura central do cinema alternativo açoriano e uma voz ímpar no panorama cinematográfico internacional.

Quem é Francisco Lacerda? Podes falar-nos um pouco do teu percurso até chegares a realizador e argumentista, vivendo na Finlândia, mas vindo gravar filmes nos Açores?

Bom, sem me querer estender muito, nasci em Fall River nos Estados Unidos, depois vim ver para S. Miguel aos 5 anos de idade, desenvolvi uma paixão enorme por cinema, fui estudar para as Caldas da Rainha onde acabei com uma licenciatura em Cinema e depois vim viver para Helsinquía com a minha parceira, mas continuei a voltar aos Açores para realizar os meus filmes. Tem sido um back and forth sempre que me surge uma ideia pela qual me apaixone e que seja necessária ser rodada nos Açores.

Quando soubeste que querias ser realizador e argumentista? Houve algum momento ou influência em particular que te levou a seguir este caminho?

Acho que a génese deu-se muito cedo, talvez com o filme Jurassic Park, não estava consciente ainda da noção de me vir a tornar cineasta, mas o amor pelo cinema começou aí, tal como o amor por querer contar histórias. As primeiras histórias que criei contava a partir de desenhos, como uma espécie de proto-storyboard. Mas foi quando tinha cerca de 11 anos de idade que me apercebi que queria fazer filmes, e foi graças a ter sido absolutamente aterrorizado pelo filme “Alien” de Ridley Scott. A experiência foi de certa forma traumatizante, um medo tão poderoso que me fez até perder o apetite durante semanas, mas lá no fundo havia aquele desejo de querer enfrentar esse medo, de o dissecar, de o conhecer, e foi graças a essa sede de conhecimento que então enfrentei os meus medos e voltei a ver o filme, e hoje em dia é um dos meus top 5. Claro que não fiquei por aí, vi mais e mais filmes, até ter encontrado um filme chamado “The Evil Dead”, e foi através desse filme que percebi que eu também poderia fazer um filme.

Azoresploitation – o que é e de onde surgiu esse nome/subgénero? Sentes que este conceito representa apenas a estética ou também a temática dos teus filmes?

O termo “Azoresploitation” começou como uma piada entre nós enquanto fazíamos estes filmes, acho que deve ter surgido após termos feito o “Dentes e Garras 2” mas era um termo que só era discutido entre nós. Eis que durante a estreia do “Freelancer” no MOTELX em 2018 o Nuno Gervásio a conversar comigo menciona o termo, e pronto, ao ouvir o termo da boca de outra pessoa decidi então assumir e deixar que definisse os meus filmes. Essencialmente, o Azoresploitation é mais um movimento de cinema do que um subgénero, acho que para se tornar um subgénero preciso de fazer uma longa metragem que o defina. Acredito que Azoresploitation refira-se mais a filmes de género feitos nos Açores por realizadores e artistas Açorianos, e que recontextualizam a cultura e paisagem Açorianas através dessa lente de cinema fantástico.

Achas que “Dentes e Garras!” pode ter sido o primeiro filme com um “monstro” realizado nos Açores? Como surgiu a ideia para esse projeto?

Sim, acredito que seja o primeiro filme com um monstro rodado nos Açores e o primeiro filme Português com um dinossauro.

A ideia surgiu nas férias de verão após ter terminado o meu segundo semestre na ESAD, e nasceu de uma rebeldia ao que estava a fazer e a aprender na universidade em termos de cinema Português. Estava a passar férias em Helsínquia quando encontrei este “apanha-papeis” com a cabeça de um dinossauro que abria e fechava as mandíbulas graças ao accionar de uma manivela. Aí pensei, “hm, se fizer uma coisa destas em ponto grande, tenho um dinossauro que posso usar num filme”, e o resto é história.

Se pudesses, o que dirias ao Francisco Lacerda de 2014, pronto a realizar “Dentes e Garras!”? Algum conselho ou aviso que gostarias de ter recebido?

Não lhe dizia nada, acho que lhe dava um bom e firme “thumbs up”. Havia muita coisa que poderia dizer, mas acho que não teria aprendido tudo o que aprendi até hoje não fosse pela experiencia que foi realizar o “Dentes e Garras!”. Não é um filme perfeito de todo, mas tenho consciência disso e aprendi imenso com as suas falhas como também com o feedback que recebi. É muito importante ser auto-critico e revisitar o teu trabalho passado e reflectir sobre as suas imperfeições independentemente do quão louvado o filme seja, à que ser realista, e só assim podemos aprender e crescer e não cometer os mesmos erros, por mais que custe ouvir, e por mais que tenha custado fazer o filme.

De qual curta recebes mais feedback por parte do público? Existe alguma que tenha surpreendido pela receção.

Hm, feedback em termos de review ou adesão do publico durante a exibição? Acho que existem imensos fãs do “Freelancer”, costuma ser o filme que as pessoas recordam-se mal sabem quem eu sou. Um exemplo disso deu-se em Park City durante o Slamdance Film Festival, uns quantos cineastas conheciam o meu trabalho e mencionavam sempre o “Freelancer”.

Qual das tuas curtas te faz sentir mais satisfeito e orgulhoso de ter realizado? Por quê?

Eu diria que estou orgulhoso de todas elas, umas mais que outras, mas acho que isso deve-se mais à experiência da realização do que o resultado final. Detestei a experiência de realizar o “Dentes e Garras 2”, foi uma poderosa lição de aprendizagem, e uma experiência excruciante e psicologicamente exaustiva. Tudo o que poderia ter corrido mal na produção daquele filme aconteceu, até ao ponto de perdermos todos os brutos de rodagem do filme durante a pós-produção. It’s a long story indeed. Mas a melhor experiência de rodagem que tive foi sem dúvida o “Cemitério Vermelho”. Foi uma semana magnífica em Santa Maria com uma equipa de sonho. Que todas as rodagens corressem como a do “Cemitério Vermelho”.

Optaste, em grande parte do teu trabalho, por explorar a Comédia-Terror. Porquê? O que te inspirou a seguir esse género?

É um sub-género do qual gosto muito, quando é bem feito, eis uns exemplos de boas comédias de terror: Evil Dead 2, Bad Taste, Braindead, Deadstream. Acho que foi mesmo graças a filmes como o Evil Dead 2 e o Bad Taste que me fizeram seguir esse género. É uma combinação de géneros completamente opostos, e traiçoeira de se fazer funcionar.

É mais importante para ti fazer rir ou assustar? Ou procuras equilibrar os dois elementos para surpreender o público?

Eu acho que está tudo no “timing” das cenas. Comédia resulta devido ao timing, e o terror, nesse caso um susto, também resulta de acordo com o seu timing. É importante haver um balanço entre a comédia e o terror, ou pode-se acabar com algo que fica indeciso entre os dois tons e não se sabe se é uma comédia ou é um filme de terror. Há que saber casar os dois géneros de modo a assustar e fazer rir, algo que o filme Evil Dead 2 faz lindamente.

Quais são os teus filmes e realizadores favoritos? Houve algum que te marcou de forma especial?

Vou responder a esta pergunta com os meus 4 favoritos no meu perfil de Letterboxd: Twin Peaks: Fire Walk With Me de David Lynch; Alien de Ridley Scott, For A Few Dollars More de Sergio Leone, XTRO de Harry Bromley Davenport. Estes 4 filmes têm uma enorme relevância pessoal no meu trabalho enquanto cineasta e enquanto apaixonado por cinema.

Fernando Alle, um dos mais importantes impulsionadores da comédia/terror/trash em Portugal, participa no “Karaoke Night”. Como se conheceram? Como surgiu essa colaboração?

Eu já tinha conhecimento das curtas-metragens dele, e foi fascinante descobrir que eu não era o único com um desejo de realizar filmes com gore em Portugal. Conhecemo-nos através do facebook em 2015, ele mandou-me uma DM a pedir uma cópia do Dentes e Garras e depois continuamos em contacto, tinha acabado de filmar o Dentes e Garras 2 na altura. Conhecemo-nos em carne e osso no Motelx em 2016 e desde então continuamos bons amigos e a trabalhar nos filmes uns dos outros. A nossa primeira colaboração foi no Freelancer, em que ele emprestou vários adereços de efeitos especiais. No Karaoke Night, para além do seu cameo (o qual era mais longo do que acabou sendo no filme) foi responsável pelos efeitos especiais do filme. Ele voltou a colaborar comigo enquanto artista de efeitos especiais no Cemitério Vermelho, e vai continuar a marcar presença nos meus filmes sempre que precisar que o sangue jorre pelo ecrã abaixo. Adoro o Fernando e ele é indispensável e um excelente realizador de cinema de género, como gosto de o chamar: The Godfather of Portuguese Gore Cinema.

Sendo um amante do cinema de culto, suponho que sejas colecionador. Qual o bem colecionável mais valioso que tens? Existe alguma peça com um significado especial?

Um enorme coleccionador de cinema: 4K, Blu-ray, dvd, VHS, vinil, etc. Meu deus, tenho imensas peças de colecção valiosas e com um significado especial, acho que vou mencionar uma de cada formato. VHS: A VHS portuguesa de ex-aluguer do “The Evil Dead”. DVD: “Darkness” (1992) de Leif Jonker, um autêntico esplendor de cinema de terror independente cheio de energia e violência, filmado em super 8. Blu-ray: Edição não censurada do filme “Doriana Gray” de Jess Franco. 4K: “The Keep” de Michael Mann numa edição especial lançada pela Vinegar Syndrome.

O teu trabalho foge um pouco ao cinema convencional consumido nos Açores. Como sentes que o público regional aceitou as tuas obras? Julgou, estranhou ou entranhou?

Eu acredito que tenha entranhado, julgando pela adesão do público durante a exibição do Cemitério Vermelho no Azorean International Film Festival.

Com a tua experiência e um longo percurso em festivais, nomeações e prémios, sentes que o teu trabalho é ou foi apoiado e promovido pelas entidades regionais? Que melhorias gostarias de ver nesse apoio?

Acho que só começei a notar essa promoção da parte das entidades regionais após a selecção do Karaoke Night no Slamdance Film Festival, mais pelo facto de ter sido o primeiro filme de um realizador Açoriano a ser exibido no festival. Mas sim, no caso do “Cemitério Vermelho” o filme foi maioritariamente financiado por apoios regionais, e fico de coração cheio em saber que há um interesse em apoiar e promover o meu trabalho cinematográfico na RAA. Espero que continue.

O que pensas que temos de bom e de mau no cinema açoriano? Achas que existe potencial para crescer?

Eu não sei se sou a pessoa indicada para comentar o que é bom ou mau no cinema açoriano, porque ao fim ao cabo acaba por ser uma opinião pessoal baseada nos meus gostos cinematográficos, mas acredito que há muito talento nas ilhas, particularmente da parte do meu amigo e cineasta Diogo Lima (Os Últimos Dias de Emanuel Raposo), o meu eterno colaborador cinematógrafo e amigo Amarino França, e aproveito também para dar um shoutout à realizadora Catarina Gonçalves, cujo trabalho vi no Azorean International Film Festival e surpreendeu-me imenso. Dito isto, há sem dúvida alguma potencial para o cinema açoriano crescer.

Podemos esperar uma longa-metragem no futuro? Se sim, podes adiantar algo sobre esse projeto?

Obviamente, agora a questão é: Quando? Infelizmente é uma incógnita, mas posso dizer que há coisas em movimento. Lentamente, mas a andar. Não posso ainda revelar nada em concreto, não vá o diabo tecê-las, mas algo será anunciado assim que estiver tudo seguro e pronto a avançar. Entretanto, continuo a fazer curtas-metragens, uma delas será realizada nos Açores e será uma espécie de, digamos, proof of concept para a futura longa-metragem. Também estou a preparar uma nova curta para filmar aqui em Helsínquia, estamos a trabalhar com uma produtora local e alguns talentos deveras surpreendentes. Aproveito também para dizer que concluí recentemente uma nova curta-metragem que será anunciada em breve. É a minha primeira curta-metragem filmada por inteiro na Finlândia e em película de 8mm.
 

Agradecemos profundamente ao Francisco Lacerda pela sua prontidão e simpatia ao aceitar esta entrevista. Estamos entusiasmados com os seus futuros projetos e desejamos que continue a surpreender-nos com novas e ainda mais ambiciosas criações, incluindo a tão aguardada primeira longa-metragem.

Para quem estiver na ilha Terceira, esta é uma excelente oportunidade de conhecer o universo único do “Azoresploitation”: no próximo dia 29 de março, organizamos uma sessão especial dedicada ao trabalho de Francisco Lacerda, onde será possível mergulhar no seu cinema de género, feito com paixão, irreverência e, claro, um toque açoriano. Não percam!

Promo- video da Sessão » Aqui

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Last modified: Março 24, 2025