Assisti a um espetáculo no Rivoli, Estro/Watts, que será difícil de explicar por palavras. Não foi uma peça de teatro, não foi um musical, nem um concerto, nem uma noite de poesia. Mas foi um pedacito de cada um destes cenários. E se, por acaso, as palavras me falharem na descrição, não te admires que prefire expor as minhas emoções, a consequência de ver uma homenagem tão bonita ao rock do século XX.
De 1977 a 1980, João de Menezes-Ferreira colocava no ar o seu programa de rádio, A idade do Rock, através da RDP-FM Estéreo. Nas primeiras edições, abria a sua rubrica com um texto da sua autoria:
“A sociologia bastaria para impor um programa sobre os 20 anos já passados da era rock. Mais do que qualquer expressão artística, mais do que no cinema, nas artes plásticas ou noutros géneros de música, a juventude inventou no rock o seu palco, um lugar físico e mental de raiva e de esperança. Contracultura da cidade por vezes deslumbrada pelo campo, o rock foi e é uma linguagem universal, a talvez primeira arte de massas. Para explodir o som, amplificou instrumentos antigos, inventou outros, bebeu com ele as mil influências que são o percurso da sua história. E com o rock renasce a poesia oral já perdida na noite dos tempos. O livro é agora o som. A palavra já pode retomar a ressonância do grito e cantar o livre-amor, a paz, a experiência proibida, a igualdade a natureza violada, a fé, a autodestruição”
Foi fruto deste reconhecimento ao rock, que Paulo Furtado (The Legendary Tigerman) e Gonçalo Amorim, apresentaram durante este fim de semana o espectáculo Estro/Watts, onde despiram as palavras da música e as reconstruíram, delineando uma homenagem aos poetas e contextos que as criaram. Um espectáculo antológico, que reuniu 35 poemas cantados outrora, por alguém que tinha pressa de falar, de passar uma mensagem e de explodir com palavras que amordaçavam a sua juventude.
Estro vem do grego antigo oîstros. É uma fúria poética, um entusiasmo que dá corpo e alma aos versos. Foi o próprio João de Menezes-Ferreira que designou a electricidade do Watts como acompanhante de luxo para as palavras. Intitulou o seu livro, Estro in Watts – A Poesia da Idade do Rock, lançado em 2013, reunindo 563 letras do universo pop/rock entre 1955 e 1980.
Traçando os mesmos caminhos honrosos, foi a vez de Gonçalo Amorim e Paulo Furtado levarem para os palcos, através da companhia Teatro Experimental do Porto, 35 poemas que marcaram uma geração. Lou Reed, Janis Joplin, Bob Dylan, Laura Nyro,Tom Waits, Ian Curtis, entre outros, que olharam para o rock como uma forma de expressão cantada por uma única voz, que respirou os mesmos ares tóxicos e irreverentes de uma juventude que começava a questionar.
Os criadores da peça descascaram as letras e enfrentaram-nas. Cada texto representou uma performance, acompanhada pela composição musical de Paulo Furtado, que tentou sempre fugir às canções e dar sentimento e emoções às palavras que estavam a ser depositadas no público.
Aposto que não foi tarefa fácil, desmembrar objectos de culto, quase intocáveis. Mas a verdade é que esta blasfémia prescrita aos deuses do rock, não foi, senão, um acrescento de imunidade aos autores e autoras. Foi quase um trajecto académico, ao qual assisti, porque mesmo para alguém devoto ao rock, as palavras podem não ter tanta autoridade como o choque da guitarra electrizada. Ainda mais para nós, estrangeiros de um domínio musical angló-saxónico. Em Estos/Watts, cada poema foi traduzido, elevando a fasquia e a admiração, agora na nossa própria língua.
Pelo menos eu, confesso que a partir de hoje, depois de ter assistido ao espectáculo, há uma nova interacção entre mim e algumas das faixas que acompanham o meu deslumbre musical. Um erótico e sedutor Lou Reed, ou um Bob Marley que não se ri, são alguns dos novos exemplos que eu trouxe para a minha bolha. Uma pedrada no charco lançada por Gonçalo Amorim e Paulo Furtado, que veio agitar um núcleo que eu já pensava definido.
E de vez em quando, lá vinha os Watts da guitarra de Paulo Furtado, que acompanhado por bateria e baixo, vinham aliviar a imersividade impactante descrita pelas palavras, como quando nos tocou um excerto Hungry Freaks, Daddy, de Frank Zappa. A música, no final de contas, tem muitos centros interpretativos. E perceber cada um deles, torna o outro melhor ainda. Acho que os criadores sabiam disso e foram atenuando o choque do público, com o reconhecimento melódico, que também faz parte do universo do rock.
ESTRO/WATS esteve em exibição no último fim de semana, no Porto e ficou a cargo do Teatro Experimental do Porto – TEP.
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