Sejam bem-vindos/as ao Capítulo XVI do livro dos Mata-Ratos. Estou muito feliz de o feedback, até ao dia de hoje, ter sido muito positivo. Vamos lá ver se eu não arruino isto tudo com o décimo quarto conto, “Escravo do Sistema”! Dizem que os tornados ciclónicos literários são muito comuns. Eu não sei, para dizer a verdade. E espero que não me apareça nenhum esta semana!
Como há sempre a (grande) probabilidade de haver pessoas que não leram os primeiros capítulos, ou que não têm a mínima ideia de que estou a falar.
Assim sendo, deixo abaixo alguns links: uma introdução e contextualização deste livro, que nunca chegou a ser editado, e também os primeiros capítulos! Recomenda-se a leitura!
Contextualização:
Capítulos:
- I – “És um homem ou és um rato?”
- II – “Rei da Noite”
- III – “Armando É Um Comando” (parte I)
- IV – “Putas ao Poder”
- V – “CCM”
- VI – “Sementes do Ódio”
- VII – “Traumatismo Ucraniano”
- VIII – “Uma Trilogia Portuguesa”
- IX – “Gangue das Batinas”
- X – “Terrorista Urbano” e “Amor Eterno”
- XI – “Armando É Um Comando” (parte II)
- XII – “ZYCLON”
- XIII – “Juntos Para Sempre”
Como funciona o livro?
Aviso desde já que esta não é uma biografia da banda.
Este livro são pequenos contos literários e fantasiosos, baseados nas canções dos Mata-Ratos. Este projecto, está dividido por vários capítulos, que serão publicados a cada sexta-feira.
Cada capítulo é narrado de forma independente, sempre na primeira pessoa de um diferente personagem. Existe fio condutor que, aos poucos, é criado entre os diferentes 33 contos. Por fim, é dado um sentido comum a todos.
Ou seja, entre as diferentes histórias existe um universo “mata-ratiano”, que é descortinado de forma lenta mas coesa, a meu ver. Neste caso, este “Cães de Cristo” (o então título do livro, que foi o primeiro nome dos Mata-Ratos), cada acontecimento é um mundo por si só e os personagens vivem todos no mesmo universo, embora em espaços distintos.
Não quis limitar-te a um só género de narrativo. Cada capítulo é único por si só. Admito que a leitura, ao início, possa ser um pouco confusa e difícil de interpretar. Mas, aos poucos, vai-se entranhando. Tal como a música dos Mata-Ratos, há escritos agressivos, sexuais, outros divertidos, sarcásticos e até ironias que, à primeira impressão, possam fazer pouco sentido.
Escolhi assim escrever textos “comuns”, passando por poesia, manifestos, telegramas, entre outras metamorfoses musico-literárias.
Gosto muito da ideia de um universo literário. E ainda mais, de um universo literário punk.
Aviso! (Importante)
Tal como as letras dos Mata-Ratos, algumas partes dos textos possam parecer “vulgares” e indecentes. Mas para quem conhece o grupo, e principalmente o seu conteúdo lírico, isto não é nada de novo.
Assim sendo, é tido como como princípio comum que o conteúdo lírico “obsceno” dos Mata-Ratos não tem como intenção ofender ninguém mas sim chamar à atenção a séria questão de problemas sociais mais abrangentes, através de uma linguagem mais forte e polémica. E, desta forma, os textos literários deste livro baseiam-se nesse mesmo género de canções. Por consequência, os contos também possuem uma linguagem robusta, à semelhança do conteúdo literário do grupo lisboeta.
Caso não estejas de acordo com este tipo de expressão, e conteúdo lírico, recomenda-se que não prossigas à leitura deste artigo e capítulo.
Resumo e Contextualização
Para ajudar um pouco à compreensão de cada capítulo, decidi incluir uma pequena explicação sobre o contexto onde o personagem se encontra, a música na qual o capítulo foi baseado e a respectiva letra. O livro conta com 33 capítulos porque, em 2015 (altura em que realizei este projecto), esse era o número de anos de existência da banda (est. 1982).
O I Capítulo encontra a sua essência na música “És um homem ou és um rato?” (Ataque Sonoro, 2004). Como podemos ver na capa do álbum, existem três personagens: uma chelsea skinhead, um street punk e um terceiro tipo, que não nos é possível descortinar a sua identidade e, deste modo, houve uma confrontação entre 3 sujeitos.
O capítulo II encontra a narração realizada pelo famoso personagem “Rei da Noite” (álbum “És um homem ou és um Rato?”, Ataque Sonoro, 2004). Um dos personagens do II Capítulo cruza-se com este colega da Night.
Neste III capítulo, encontramos um texto baseado no famoso tema “Armando É Um Comando” (“Rock Radioactivo”, EMI, 1990). Desta forma, entendemos que o narrador do conto é o personagem “Armando” (antes de ingressar na vida militar). Este encontrou-se com o “Rei da Noite” (“És um homem ou és um rato?”, Ataque Sonoro, 2004) no segundo capítulo, tendo sido o mesmo o comprador da droga que o “Rei” lhe providenciou.
Depois do IV Capítulo, “Putas ao Poder“, a linha narrativa musical dos infames Mata-Ratos apresenta-nos assim o V Capítulo e o mundo da obscenidade carnal do Zulmiro Pascoal. Para quem desconhece, ele é um tarado sexual e vem apresentar-nos o partido ideal: CCM. É-nos assim dado a conhecer o Manifesto político que o Secretário-Geral do partido CCM escreveu em 1990 e, passados 30 anos, veio finalmente à tona! Será que Zulmiro Pascoal tem possibilidades de ganhar as eleições nacionais este ano?
No VI Capítulo, é-nos apresentando um novo personagem da Musgueira, cuja identidade não nos é descortinada, e que se encontra revoltado com a situação política vigente.
Chegando ao VII Capítulo, encontramos uma inspiração literária na fusão dos temas “Traumatismo Ucraniano” (“Novos Hinos Para A Mocidade Portuguesa”, Rastilho Records, 2007) e “Inocente O Doente” (“Mata-Ratos” demo cassete, Edição de Autor, 1988). Este personagem, tal como relata a canção, imigrou da Ucrânia a Portugal mas a sua vida não melhorou. Na verdade, é-nos dada a impressão que piorou.
Chegamos ao VIII Capítulo. Retratando o estereótipo do Zé Povinho de uma forma irónica e sarcástica, os Mata-Ratos apresentam-nos “Uma Trilogia Portuguesa“. Esta é uma canção inspirado no folclore português e possui uma crítica político-social relativamente ao comportamento erróneo da nação portuguesa. O nosso personagem de hoje é a caricatura desse Zé Povinho, que admira os 3 “F” da ditadura de Salazar: Fado, Futebol e Fátima. Para além de possuir tendências racistas e xenófobas (o narrador odeia ucranianos), é também um golpeador de mulheres. Enfim, o retrato de uma triste realidade portuguesa.
O XIX não é para crentes e a leitura não é propriamente fácil. Inspirada no tema “Gangue das Batinas“, encontramos como narrador deste conto um bispo católico. Este conhece a personagem principal do conto “Putas ao Poder“, e convida-a a confessar-se. Descobrimos assim que esta trabalhadora do sexo tem apenas 15 anos e que, ao entrar na Igreja, é tida como vítima de um assédio sexual. Tal como a canção dos Mata-Ratos diz, estas Igrejas do “Gangue das Batinas” são um negócio e só se importam com a lei do “Santo Bacanal“.
O X capítulo encontra a inspiração numa fusão dos temas “Terrorista Urbano” e “Amor Eterno“. Como podemos ver, o caos está a disseminar-se e começa a aparecer um cansaço na sociedade. Por causa disso, aparece-nos um novo personagem que planeia um ataque terrorista. Ou de um amor eterno? Com o tempo, saberemos!
No XI capítulo, descobrimos que o comando Armando está a sofrer e escreve uma carta à sua amada, Arminda. O conto encontra-se narrado na primeira pessoa, ou seja pelo Armando, em forma de carta (antiquado, sabemos, mas em 1990 – altura em que foi escrita a canção – não havia ainda e-mail e muito menos Facebook!).
Chegando ao XII capítulo, nota-se a aglomeração de alguns indivíduos que, de uma forma informal ou formal (ainda não se sabe), protestam contra o poder vigente! Esta associação auto denomina-se “ZYCLON”. Porque será? E em que acreditam? Podemos reparar que, aos poucos, se vai instalando uma desestabilidade social neste universo “Mata-Ratiano”.
Este XIII capítulo fala-nos de um amor perdido, perdido na Albânia. O nosso narrador encontra-se deveras enamorado da “Cabra da Montanha”: este é um conto inspirado na canção “Junto Para Sempre“. Este sujeito percorreu o mundo para a encontrar e está farto dos políticos do ZYCLON (“cheira-lhe” a problemas, pun intended!) e também já está cansado dos “ratos” (referente à canção “Ratos” do álbum “Rock Radioactivo).
Estamos a chegar agora a algum lado. Lembram-se do gajo que levou nos cornos, no capítulo I? Pois bem, ele está de volta! Está cansado de ser um “Escravo do sistema” e, neste capítulo XIV, o sujeito vai marcar presença num reunião secreta. Este conto também manda umas dicas sobre a canção “Dança com a merda“.
E agora?
Este é o décimo quarto capítulo do livro, inspirado nas músicas “Escravo do Sistema” e “Dança com a merda“, e estou ainda a ajustar e moldar a forma como seguir-se-ão os restantes. Deixa-me comentar-te que a introdução ao livro é tão extensa quanto o próprio o capítulo em si. Isto deve-se ao facto que, na minha humilde opinião, o contexto e explicação destes pequenos contos são uma parte inerente e crucial do livro.
A meu ver, no equilibrio geral das coisas, a contextualização encontra o mesmo grau de importância que os capítulos. Um não pode co-existir sem o outro, de forma a prevalecer um total entedimento da escrita “mata-ratiana“.
Música “Escravo do Sistema”
Música “Dança com a merda”
Letra “Dança com a merda”
Nas grandes cidades
Em passos de danca
Movidos pela maquina
Os corpos avancam
Corpos de plastico
Fantoches de consumo
Caricaturas vivas
Da podridao do mundo
Danca com a merda
Nesta nova era
Danca com os porcos
Na sociedade moderna
Enterrado numa pia
No mundo da alienacao
Derrete-se em prazer
No esgoto da civlizacao
E danca com a merda
Nesta nova era
E danca com os porcos
Da sociedade moderna
CAP XI – ESCRAVO DO SISTEMA
Bato três vezes à porta e abre-se uma pequena janela, no centro desta. Dali surgem uns pequenos e redondos olhos azuis. A voz, rouca e baixa, pergunta-me: “Quem é da casa?”. Pergunta-chave para a senha. Mas que estupidez. O maior lugar-comum das reuniões secretas que, na verdade, não são tão secretas assim porque quem anda nestas ondas, sabe muito bem o que está a acontecer agora.
Estou cansado, farto e triste. Levo nos cornos dos punks, ignoram-me na discoteca, estão cansados das minhas conversas e o meu melhor amigo é ainda convocado para a tropa. Está na altura de mudança. E porque a revolução não passa na televisão, decidi juntar-me a esta congregação. E aqui estou. Entro, após a password foleira “escravo do sistema”.
Quando entro, passo por uma pequena biblioteca com intelectualoides a lerem Emma Goldman, Bakukine e Prudhon. Ali não se fuma, diz-me o colega que me guia pela casa. Passamos a biblioteca e apenas dou uma breve vista de olhos pelos livros. Para além de autores anarquistas e socialistas utópicos, deparo-me com romances clássicos gregos e romanos. Teorias da modernidade e pós-modernidade. A queda do muro Berlim e a fundação dos Impérios Persas.
Uma panóplia do caralho. Estes gajos devem saber o que falam. O colega abre a porta e entramos no bar improvisado. Na verdade, explica-me o colega, esta é uma casa que se sustenta através da auto-gestão e todos os lucros da venda de bebidas e comida vegana são para as despesas da casa. O restante dinheiro vai para a causa. Enquanto ele fala e fala, ouço dois revolucionários no bar. Um deles, empenhando um cigarro na mão, beberica um whisky enquanto comenta:
“E quem é este escravo do sistema? Sou eu, és tu e é o vizinho. E assim dançamos. Nesta nova era, quem coloca a música são os políticos e quem dança na merda somos nós. Recuso levar uma vida abaixo de cão.“
O outro, concorda, ao que responde:
“Toda a vida o mesmo problema. Não é por não termos tido acesso à educação que não devemos ter direito a soluções“
Por fim, o outro conclui.
“A escravidão passa pela nossa deseducação”.
É aqui que quero estar. Mal concluo isto, dou um longo suspiro e, nesse preciso momento, as luzes apagam-se e faz-se silêncio. Estranho. Não esperava isto. Alguns abandonam o bar e sentam-se no chão, outros enconstam-se à parede e eu acabo por encontrar uma cadeira.
Chega ali um orador. Ela sai da penumbra mas não lhe consigo ver a cara. É um vulto estranho. Começo a ouvir-lhe a voz e, mal sai da escuridão reconheço-lhe logo a feição. E, de todas as pessoas do mundo, não lhe esperaria ver-lhe novamente.
Só me vem um pensamento à cabeça.
“Foda-se”.
Fim.
Publicarei cada conto uma vez por semana no Portugarte, à sexta-feira, em honra à música “Bezana Ska“, onde o pessoal sai precisamente nesse dia para embededar-se e divertir-se.
A ideia deste livro é precisamente esta. Criar uma bebedeira colectiva literária, onde somos imergidos pelo álcool das boémias palavras e música dos Mata-Ratos. Vemo-nos na tasca! Até breve compas!