Maria Giulia Pinheiro é poeta, performer, roteirista, pesquisadora e ativista.
Autora de “Da Poeta ao Inevitável”, pela Editora Patuá (2013), “Alteridade”, pelo Selo do Burro (2016), “Avessamento”(2017) e “30 para 30″(2020), ambos pela Editora Urutau, além de dramaturga dos espetáculos “Mais um Hamlet”, “Alteridade”, “Bruta Flor do Querer” e “A Palavra Mais Bonita”, os últimos dois também sob sua direção. Em 2020, ficou em 4. Lugar na Copa do Mundo de Poetry Slam, da França, representando Portugal. É fundadora do grupo teatral Companhia e Fúria, em que atua, dirige e escreve. Criadora e organizadora do ZONA Lê Mulheres, um sarau em que todas e todos podem ler, desde que textos escritos por mulheres e do Todo Mundo Slam um poetry slam decolonial pensado para cruzar fronteiras.
É performer e poeta nos espetáculos “Alteridade” e “A Palavra mais Bonita”. Co-idealizadora e apresentadora do slam “Ciranda- Jogo de Palavra Falada” e da “Ginginha Poética”. Pesquisa a tradição de mulheres na arte, a importância de um Imaginário feminista, além de estruturas de comunidades livres desde 2012, quando lançou o manifesto “Por um Imaginário”. Foi Analista de Pesquisa do documento “Precisamos falar com os homens? Uma jornada pela Igualdade de Gênero”, realizada pela ONU Mulheres e o portal PapodeHomem, com viabilização do Grupo Boticário. Coordena o Núcleo Feminista de Dramaturgia no Pequeno Ato desde 2016, onde ministrou aulas de dramaturgia por 3 anos. Atualmente as aulas do Núcleo de Dramaturgia Feminista acontecem online. Trabalhou como assistente de roteiro na Miração Filmes durante os anos de 2012 a 2015 em projetos para o Canal Brasil e SESCTV. Como repórter, trabalhou no Jornal Agora, do Grupo Folha, além de para os portais MSN e iG, ambos pela agência MBPress. Como educadora, trabalhou em colégios particulares de São Paulo e em projetos sociais.
É pesquisadora de tendência de mercado, autônoma, com experiência nas empresas Favo, Questto|Nóe Float, nas contas Google, Ramarim, Itau cultural, Picadilly, ONU Mulheres Brasil, entre outros. Estudou dramaturgia e direção na Escola Livre de Santo André, formou-se jornalista pela Fundação Cásper Líbero e atriz pelo Teatro Escola Célia Helena, especializou-se em Roteiro para TV na Academia Internacional de Cinema e em Treinamento Pessoal pela ICC – International Coaching Community e é pós-graduada no curso “Arte na Educação: teoria e prática” – ECA/USP.
Entrevista a Maria Giulia Pinheiro
O que significa ser uma poeta de poetry slam para ti? Poderias comentar-nos qual o papel da mulher dentro do mundo da poesia e de que forma o feminino encontra-se representado poeticamente em Portugal e Brasil?
Não acho que eu seja uma poeta de poetry slam. Sou uma poeta que participa de poetry slam. É diferente pensarmos assim. Não penso que existe uma poesia de poetry slam, propriamente. Existem estratégias para a brincadeira.
E penso também que as/os poetas de outros períodos históricos, se vivos, fariam o mesmo. No fim, apesar do jogo, da pseudo competição (que é, todos sabemos, uma besteira), o que o poetry slam faz é abrir espaços de escuta para a poesia. A oralidade é parte integrante de qualquer projeto poético que se entenda como construtor de presente, como reconstrução do real e, ao mesmo tempo, como possiblidade nova de existência. Por isso, penso que quem escreve poesia hoje e não enxerga o poetry slam como uma possibilidade pode não ter entendido o que significa essa nova plataforma mundial de troca viva e potente da palavra falada. Claro, cada meio exige o seu conteúdo específico e há muito do escrito que não funciona no cênico. E vice versa. Mas entender cada plataforma é também função dos artistas. Eu, particularmente, entendo que é preciso calcular a palavra falada e a escrita em seus respectivos lugares. Tenho quatro livros publicados e não são todos os poemas que falo. Assim como nem todos os que falo estão publicados.
Sobre o papel da mulher dentro da poesia, sinto ser uma assunto que interessa mais aos homens do que às mulheres, propriamente. Ninguém pergunta o papel dos homens na poesia, porque já é dado que esse é o terreno “universal”. Penso que essa questão, o “papel da mulher” dentro do mundo da poesia (e de qualquer outro mundo), é uma pergunta feita e respondida por homens e que as mulheres, no fundo, não tem tanto tempo para respondê-la, ocupadas em duplas ou triplas jornadas e ainda em serem seres criativos na arte (e na matemática e na ciência e na medicina…) ambientes predominantemente masculino, em um sistema predominantemente masculino. No fundo, o papel da mulher na poesia é o mesmo que em todos os ambientes: criar, revolucionar e ser esquecida e/ou tratada como exceção à regra masculina.
Já sobre a forma que o feminino se encontra representado poeticamente em Portugal e Brasil, também, existem muitas camadas. Primeiro a representação que homens fazem sobre o feminino, aqui ou lá. E essa representação, tão estereotipada e esvaziada de realidade, que afasta no campo do imaginário a masculinidade de lidar com o que é feminino como parte da construção subjetiva, seja da própria, seja do outro, impedindo assim uma relação de alteridade possível. Seria interessante se os homens pensassem mais sobre a questão do masculino ao invés de constantemente lidarem com o feminino como outro e o masculino como universal. Assim como a branquitude como construção de identidade precisa ser repensada e racializada. A branquitude e a masculinidade são partes, não são o universal.
Se pensarmos o feminino representado por si próprio poeticamente, principalmente no Brasil, temos uma leva de poetas que se enxergam como feministas, ou seja, como mulheres críticas à condição social, histórica e política da mulher, que neste momento constroem possibilidades poéticas bastante interessantes. Especificamente, me interessam as poetas que entendem também essa representação cruzada com raça, orientação sexual e classe social.
E, bom, toda uma outra camada que deriva dessa pergunta, é bastante forte entender como a mulher brasileira é tratada nas construções poéticas (e, obviamente, políticas) no imaginário português. Como mulher brasileira morando em Portugal, percebo o quanto essas construções de imaginário atingem diretamente o cotidiano. E causam violências simbólicas e reais.
Migraste do Brasil para Portugal em 2019 e, no presente ano, foste convidada para representar Portugal na Copa do Mundo de Poetry Slam, que ocorre anualmente na França há aproximadamente vinte anos. Ficaste em 4° lugar, tendo sido esta a melhor posição de sempre que o nosso país alcançou neste campeonato. Poderias falar-nos sobre esta tua experiência?
Participo de poetry slam no Brasil desde 2013. Durante os primeiros anos, em que já era formada como jornalista, dramaturga, diretora e atriz, me apaixonei profundamente por este formato de encontro. No poetry slam, as pessoas se escutam. É uma ágora, um espaço de troca profunda entre diferentes. É a experiência de democracia, de alteridade, de diversão e de encontro mais vertical que já vivi. Em 2016, competi o SLAM BNDS, que aconteceu na Cidade de Deus, durante a FLUP (Festa Literária das Periferias) e alcancei o quarto lugar. Nesse mesmo ano, competi o SLAM BR, a final nacional brasileira, representando o Menor Slam do Mundo. São experiências muito intensas. Na FLUP, 5, 6, 7 mil pessoas assistindo, poetas do Brasil inteiro ali jogando juntos. No Slam Br, ainda mais poetas, ainda mais pessoas. Não tem como não sair transformada de experiências assim. Da palavra e da voz como grandes instrumentos de arte.
A partir daí, me afastei um pouco dos poetrys slams nesse lugar de slammer e fui para organização. Já fazia isso antes, mas aprofundei esse caminho de produção. Além disso, foquei minha carreira enquanto poeta que é também performer, fiz espetáculos de palavra falada com música, com aparatos teatrais. Mas nunca me afastei propriamente do poetry slam. Assistia, produzia. Nesse período também descobri que meu pai tinha uma doença terminal, mas isso é outra história.
Bom, em maio de 2019, me mudei para Portugal. Comecei a frequentar poetry slams, sempre brinco, mas é verdade, para fazer amigos. A comunidade do poetry slam no mundo é muito acolhedora e as pessoas que praticam costumam ser abertas umas com as outras. Como me mudei sozinha e sem uma rotina muito específica, que me fizesse conhecer pessoas, pensei em procurar no poetry slam e nos eventos de poesia minha comunidade. E, bom, isso, o teatro e o cinema são o que centrou minha vida durante quase 15 anos, não seria diferente em outro território.
E, então, comecei a competir poetry slam novamente. Fui selecionada para o Portugal Slam via o campeonato Pré-Slam e tive minha vaga para a final nacional de 2019. Fiquei em segundo lugar, o primeiro lugar foi Lucerna do Moco, poeta angolano de quem sou muito fã. Porém Lucerna teve um conflito de agendas e não pode representar Portugal na La Coupe du Monde | Grand Poetry Slam 2020. Portanto, fui eu.
A Copa aconteceu online, em razão da pandemia, e foi mesmo muito emocionante. Na primeira fase eu passei do tempo e tive uma penalização de -0,5, o que é muita coisa no poetry slam. Então, empatei com a representante da Costa Rica, Andrea Gomez e fizemos uma rodada de “pênaltis”. Imagine? Pessoas no mundo inteiro assistindo e nós duas competindo com poesias por notas de jurados escolhidos na hora, que sequer falam nosso idioma. Ganhei essa etapa, fui selecionada para a semi-final e terminei em segundo nessa segunda rodada. A final também foi bastante emocionante e eu fiquei em quarto lugar, com diferença de 0,1 para a terceira colocada e 0,2 para o segundo.
Realmente, em um período em que nenhum jogo acontecia no mundo, a Copa do Mundo de Poetry Slam, sendo online, causou um alvoroço e uma sensação de união e de comunidade muito bonita. Ver pessoas no Brasil, na Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, claro, em Portugal e em tantos lugares do mundo conectadas ao mesmo tempo, na mesma tela, ouvindo as minhas palavras, a minha emoção e minha performance e, mais!, torcendo por mim, torcendo pelos fonemas da minha boca, isso é indescritível.
Fico muito contente de trazer esse mérito para Portugal e sinto que ele não é só português, mas de toda a língua. Como poeta, sou apaixonada pela linguagem e fico muito feliz com esta colocação, mas mais ainda com a paixão que esse evento gerou.
Acredito profundamente na poesia como forma de enxergar a existência e essa dessacralização da poesia que o poetry slam promove e, mais, essa sensação cotidiana da palavra poética, a ponto de torcermos para ela, é algo muito poderoso.
Sabemos que tens a intenção de circular pelos países de língua portuguesa com o teu espetáculo “A Palavra Mais Bonita“. Qual é a narrativa desta obra e as suas principais influências?
Este é o momento em que conto sobre a doença terminal de meu pai. No dia 16 de dezembro de 2016, durante o Slam Br que competi, soube que meu pai tinha ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) do tipo Bulbar. Eu já cuidava do meu pai há um ano antes disso, período no qual ele teve o diagnóstico de AVC, mas nesse dia eu e minhas irmãs soubemos que era uma doença terminal, crônica, degenerativa e muito, muito cruel.
Passei os próximos dois anos cuidando dele, com elas. Meu pai me criou (minha mãe, com quem tenho uma relação excelente, saiu de casa quando eu era muito nova) e ver a pessoa que me criou definhando foi extremamente dolorido. Meu pai perdeu a capacidade de falar um ano antes de morrer. Junto com a capacidade de falar, meu pai perdeu a linguagem. Não ter a linguagem para me despedir do meu pai, eu, que talho a palavra como ofício, eu, que entendia a comunicação como a forma primeira de amar, foi uma experiência que ainda tento nomear.
Para isso, para encontrar as palavras, um ano depois do meu pai falecer, criei o espetáculo “A Palavra Mais Bonita”. Nele, conto a minha história e a história do meu pai e recolho as palavras mais bonitas da plateia. Com essas palavras, escrevo um poema ali, ao vivo, no risco do público, na tentativa de homenagear a última palavra do meu pai. Como não sei qual foi, tento com todas.
Meu objetivo com esse espetáculo é circular por todos os países de língua portuguesa, nessa procura pela palavra mais bonita e também em um estudo da colonização e da construção de linguagens a partir do processo decolonial de cada lugar.
Apresentei já em São Paulo, Lisboa, Maputo, Santiago. Esse ano iria para Luanda e Macau, mas não foi possível. Penso que o espetáculo será completamente transformado (faz parte do cerne da performance, transformar-se) agora. Não se pode mais falar de luto e morte como se falava antes dessa pandemia e, ao mesmo tempo, parece ainda mais imperativo fazer rituais de luto nesse momento.
É difícil dizer quais as influências. A princípio, duas muito diretas: Angelica Liddell, em sua proposta de transformar dor em beleza, e Hannah Gadsby, que me apontou caminhos para o formato do stand up, principalmente em termos dramatúrgicos. Mas venho do teatro, da palavra falada em muitos aspectos, sou uma leitora voraz e uma espectadora mais voraz ainda. Então é difícil pontuar especificamente as referências. Boa parte do que me inspira vem da literatura e das artes visuais. Dou aulas da minha pesquisa de dramaturgia feminista já há 5 anos e certamente essa pesquisa me transforma em tudo o que crio.