Sejam bem-vindos/as ao Capítulo VII do livro dos Mata-Ratos. Estou muito feliz de o feedback, até ao dia de hoje, ter sido muito positivo. Vamos lá ver se eu não arruino isto tudo com o sétimo conto, “Traumatismo Ucraniano“! Dizem que os tornados ciclónicos literários são muito comuns. Eu não sei, para dizer a verdade. E espero que não me apareça nenhum esta semana!
Como há sempre a (grande probabilidade) de haver pessoas que não leram os primeiros capítulos, ou que não têm a mínima ideia de que estou a falar.
Assim sendo, deixo abaixo alguns links: uma introdução e contextualização deste livro, que nunca chegou a ser editado, e também os primeiros capítulos! Recomenda-se a leitura!
Contextualização:
Capítulos:
- I – “És um homem ou és um rato?”
- II – “Rei da Noite”
- III – “Armando É Um Comando”
- IV – “Putas ao Poder”
- V – “CCM”
- VI – “Sementes do Ódio”
Como funciona o livro?
Aviso desde já que esta não é uma biografia da banda.
Este livro são pequenos contos literários e fantasiosos, baseados nas canções dos Mata-Ratos. Este projecto, está dividido por vários capítulos, que serão publicados a cada sexta-feira.
Cada capítulo é narrado de forma independente, sempre na primeira pessoa de um diferente personagem. Existe fio condutor que, aos poucos, é criado entre os diferentes 33 contos. Por fim, é dado um sentido comum a todos.
Ou seja, entre as diferentes histórias existe um universo “mata-ratiano”, que é descortinado de forma lenta mas coesa, a meu ver. Neste caso, este “Cães de Cristo” (o então título do livro, que foi o primeiro nome dos Mata-Ratos), cada acontecimento é um mundo por si só e os personagens vivem todos no mesmo universo, embora em espaços distintos.
Não quis limitar-te a um só género de narrativo. Cada capítulo é único por si só. Admito que a leitura, ao início, possa ser um pouco confusa e difícil de interpretar. Mas, aos poucos, vai-se entranhando. Tal como a música dos Mata-Ratos, há escritos agressivos, sexuais, outros divertidos, sarcásticos e até ironias que, à primeira impressão, possam fazer pouco sentido.
Escolhi assim escrever textos “comuns”, passando por poesia, manifestos, telegramas, entre outras metamorfoses musico-literárias.
Gosto muito da ideia de um universo literário. E ainda mais, de um universo literário punk.
Aviso! (Importante)
Tal como as letras dos Mata-Ratos, algumas partes dos textos possam parecer “vulgares” e indecentes. Mas para quem conhece o grupo, e principalmente o seu conteúdo lírico, isto não é nada de novo.
Assim sendo, é tido como como princípio comum que o conteúdo lírico “obsceno” dos Mata-Ratos não tem como intenção ofender ninguém mas sim chamar à atenção a séria questão de problemas sociais mais abrangentes, através de uma linguagem mais forte e polémica. E, desta forma, os textos literários deste livro baseiam-se nesse mesmo género de canções. Por consequência, os contos também possuem uma linguagem robusta, à semelhança do conteúdo literário do grupo lisboeta.
Caso não estejas de acordo com este tipo de expressão, e conteúdo lírico, recomenda-se que não prossigas à leitura deste artigo e capítulo.
Resumo e Contextualização
Para ajudar um pouco à compreensão de cada capítulo, decidi incluir uma pequena explicação sobre o contexto onde o personagem se encontra, a música na qual o capítulo foi baseado e a respectiva letra. O livro conta com 33 capítulos porque, em 2015 (altura em que realizei este projecto), esse era o número de anos de existência da banda (est. 1982).
O I Capítulo encontra a sua essência na música “És um homem ou és um rato?” (Ataque Sonoro, 2004). Como podemos ver na capa do álbum, existem três personagens: uma chelsea skinhead, um street punk e um terceiro tipo, que não nos é possível descortinar a sua identidade e, deste modo, houve uma confrontação entre 3 sujeitos.
O capítulo II encontra a narração realizada pelo famoso personagem “Rei da Noite” (álbum “És um homem ou és um Rato?”, Ataque Sonoro, 2004). Um dos personagens do II Capítulo cruza-se com este colega da Night.
Neste III capítulo, encontramos um texto baseado no famoso tema “Armando É Um Comando” (“Rock Radioactivo”, EMI, 1990). Desta forma, entendemos que o narrador do conto é o personagem “Armando” (antes de ingressar na vida militar). Este encontrou-se com o “Rei da Noite” (“És um homem ou és um rato?”, Ataque Sonoro, 2004) no segundo capítulo, tendo sido o mesmo o comprador da droga que o “Rei” lhe providenciou.
Depois do IV Capítulo, “Putas ao Poder“, a linha narrativa musical dos infames Mata-Ratos apresenta-nos assim o V Capítulo e o mundo da obscenidade carnal do Zulmiro Pascoal. Para quem desconhece, ele é um tarado sexual e vem apresentar-nos o partido ideal: CCM. É-nos assim dado a conhecer o Manifesto político que o Secretário-Geral do partido CCM escreveu em 1990 e, passados 30 anos, veio finalmente à tona! Será que Zulmiro Pascoal tem possibilidades de ganhar as eleições nacionais este ano?
No VI Capítulo, é-nos apresentando um novo personagem da Musgueira, cuja identidade não nos é descortinada, e que se encontra revoltado com a situação política vigente.
Chegando ao VII Capítulo, encontramos uma inspiração literária na fusão dos temas “Traumatismo Ucraniano” (“Novos Hinos Para A Mocidade Portuguesa”, Rastilho Records, 2007) e “Inocente O Doente” (“Mata-Ratos” demo cassete, Edição de Autor, 1988). Este personagem, tal como relata a canção, imigrou da Ucrânia a Portugal mas a sua vida não melhorou. Na verdade, é-nos dada a impressão que piorou.
Para além destas canções, há mais um easter egg: a referência ao “Rap da Felicidade” (através da frase contida no VII Capítulo, “Eu só quero é ser feliz”) é um tributo à música funk dos brasileiros Cidinho & Doca, DJ Marlboro (1994), que, à semelhança do Ucraniano, só buscam uma melhor vida. O refrão desta canção brasileira é o seguinte:
Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar
E agora?
Este é o sétimo capítulo do livro e estou ainda a ajustar e moldar a forma como seguir-se-ão os restantes. Deixa-me comentar-te que a introdução ao livro é tão extensa quanto o próprio o capítulo em si. Isto deve-se ao facto que, na minha humilde opinião, o contexto e explicação destes pequenos contos são uma parte inerente e crucial do livro.
A meu ver, no equilibrio geral das coisas, a contextualização encontra o mesmo grau de importância que os capítulos. Um não pode co-existir sem o outro, de forma a prevalecer um total entedimento da escrita “mata-ratiana“.
Música “Traumatismo Ucraniano”
Letra “Traumatismo Ucraniano”
[Verso 1]
Para trás ficaram a familia e amigos
Na busca do sonho e um futuro feliz
Foi aterror num país de imigrantes
No cú da Europa, o local é distante
Longe está a Ucrânia
Esta merda parece a Albânia
Anos de estudo não dão dinheiro
Destinado à serveta de pedreiro
Para o que veio, pergunta agora
Ser enganado a toda a a hora
Longe está a Ucrânia
Esta merda parece a Albânia
[Refrão]
É a lenda, o mito urbano
Traumatismo Ucraniano
No seu sonho, cai o pano
Traumatismo ucraniano
Uma vez pelo cano
Traumatismo ucraniano
Estás de volta todo o ano
Traumatismo ucraniano
Sonhos da Ucrânia
No seu turpor
Com vodka camarada afoga a sua dor
Desesperado pelo vencimento
Vai-lhe acabar enterrado no cimento
[Refrão]
Envia tudo para quem ficou
E ficam os restos que alguém deixou
O suor engorda o empreiteiro
Quando gravo a merda em dinheiro
Será que um dia irá voltar?
Ou num concreto se irá enterrar?
Se família quiser trazer
Serão outros que terão de sofrer
[Verso 1]
[Refrão]
Música “Inocente O Doente”
Letra “Inocente O Doente”
Eu não sei o que estava a fazer
Não era eu que estava dentro de mim
Matei-os a todos um por um
Tive prazer, agora quero morrer
Inocente, O Doente (wooo-woo-hoo)
Eu não sei porque me querem prender
Uma voz estava dentro de mim
Sangue vertido, o cordeiro de Deus
Já matei, agora vou para o céu
CAP VII – INOCENTE O DOENTE
Fui obrigado a emigrar. Deixei para trás a família, amigos e cachorro. A minha dor já a conheces bem. Viste-a na televisão. Tens um amigo que também emigrou. Até já pensaste nisso. Mas faltou-te a coragem. Faltaram-te os colhões. E se tivesses que deixar tudo para trás como eu? Anos e anos de estudo para chegar a Portugal e trabalhar como servente de pedreiro. Sou engenheiro, mas não tenho dinheiro.
O que quero não é ser feliz. Quero que sejam felizes por mim. Por isso, envio o pouco que recebo para aqueles que me são queridos. Esta podia ser uma história portuguesa, com certeza. Mas não. A realidade que vivo é um verdadeiro traumatismo para mim. As coisas já não são o que eram. Este país de emigrantes é-lo novamente. Mas agora, as pessoas já não regressam.
O que vim fazer para aqui? Ninguém espera ser salvado de um navio que se encontra a afundar. Ninguém encontra a esperança num lugar de onde os próprios ratos fogem. Este país é apenas uma lenda do que já foi. Lá longe vai a Ucrânia e esta merda parece a Albânia.
E eu? O que a mim me resta? Desespero, solidão e expetativas de uma família que mal sobrevive. Não consigo regressar, não os consigo desapontar. Tenho que encontrar uma solução, antes que me torne um vilão. E, por isso, deito-me no sofá. E aguardo. Aguardo por uma resposta que me surja. Mas nada aparece.
Encontro-me adormecido e decido desligar da realidade. Ligo a TV e coloco num canal qualquer. E mal faço isto, e entre os olhos entreabertos – culpa do sono que me atormenta e ao mesmo tempo não me deixa dormir – as coisas conectam-se. Fazem sentido. Ouço um discurso inflamatório:
“O perdão fiscal é só para os milionários! Recuso-me a pagar os impostos! Vejo auto-estradas a serem construídas mas o acesso à saúde e educação é cada vez mais restrito àqueles que são detentores de capital! E eu? Com os passar dos anos, acabei sem nada! NADA! Está na altura de um novo mundo! De um admirável mundo novo!“
Penso e medito sobre o tema. Encho um copo com vodka e dou um valente trago. Não é preciso nada mais, estou convencido. Decido assim juntar-me a esta causa. Porque quando a crise continua, a luta renasce. Uma coisa vos digo: Sou doente, mas não inocente!
Fim.
Publicarei cada conto uma vez por semana no Portugarte, à sexta-feira, em honra à música Bezana Ska, onde o pessoal sai precisamente nesse dia para embededar-se e divertir-se.
A ideia deste livro é precisamente esta. Criar uma bebedeira colectiva literária, onde somos imergidos pelo álcool das boémias palavras e música dos Mata-Ratos. Vemo-nos na tasca! Até breve compas!
Sugestões, caricas, cartas de amor ou de “sentir o ódio”? É escrever-me!