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Livro Mata-Ratos – “Cães de Cristo”

AE quando me partiram a cabeça,deixaram-me ao abandono. Ao cuspirem-me na cara, ainda se deram ao desplante de me perguntar: “Afinal, és um homem ou és um rato?”.

Mata-Ratos

Olá a todos e todas! Sou o Paulo e apresento-vos o livro “Cães de Cristo”.

Senão tens a mínima ideia de que estou falar, peço-te encarecidamente que, antes de avançar, primeiramente leias este artigo, ou seja, que te orientes melhor com este guia para uma contextualização, resumo e apresentação deste projecto do-it-yourself. Senão, é capaz que fiques um pouco à nora.

Como funciona o livro?

Aviso desde já que esta não é uma biografia da banda.

Este livro são PEQUENOS contos literários e fantasiosos, baseados nas canções dos Mata-Ratos. Este projecto, está dividido por vários capítulos, que serão publicados a cada sexta-feira.

Cada capítulo é narrado de forma independente, sempre na primeira pessoa de um diferente personagem. Existe fio condutor que, aos poucos, é criado entre os diferentes 33 contos. Por fim, é dado um sentido comum a todos.

Ou seja, entre as diferentes histórias existe um universo “mata-ratiano”, que é descortinado de forma lenta mas coesa, a meu ver. Neste caso, no “Cães de Cristo” (o então título do livro, que foi o primeiro nome dos Mata-Ratos), cada acontecimento é um mundo por si só e os personagens vivem todos no mesmo universo, embora em espaços distintos.

Não quis limitar-te a um só género de narrativo. Cada capítulo é único por si só. Admito que a leitura, ao início, possa ser um pouco confusa e difícil de interpretar. Mas, aos poucos, vai-se entranhando. Tal como a música dos Mata-Ratos, há escritos agressivos, sexuais, outros divertidos, sarcásticos e até ironias que, à primeira impressão, possam fazer pouco sentido.

Escolhi assim escrever textos “comuns”, passando por poesia, manifestos, telegramas, entre outras metamorfoses musico-literárias.

Gosto muito da ideia de um universo literário. E ainda mais, de um universo literário punk.


Aviso

Tal como as letras dos Mata-Ratos, algumas partes dos textos possam parecer “vulgares” e indecentes. Mas para quem conhece o grupo, e principalmente o seu conteúdo lírico, isto não é nada de novo.


Contextualização

Para ajudar um pouco à compreensão de cada capítulo, decidi incluir uma pequena explicação sobre o contexto onde o personagem se encontra, a música na qual o capítulo foi baseado e a respectiva letra. O livro conta com 33 capítulos porque, em 2015 (altura em que realizei este projecto), esse era o número de anos de existência da banda.

Este primeiro conto encontra a sua essência na música “És um homem ou és um rato?” (Ataque Sonoro, 2004). Como podemos ver na capa do álbum, existem três personagens: uma chelsea skinhead, um street punk e um terceiro tipo, que não nos é possível descortinar a sua identidade.

És um homem ou és um rato?

Existem importantes elementos a realçar:

  • Este é um ambiente urbano (ou uma “Vida Suburbana” (“Sente o Ódio”, Alarm! Records, 1999), como diriam os Mata-Ratos) e encontramo-nos na imensão da noite.
  • Existe um evidente elemento de ameaça. Claramente o tipo, que provavelmente se encontra no chão, está a proteger a cara com o seu braço. Existe a possibilidade que este sujeito pertença a alguma espécie de tribo urbana, devido à clássica tatuagem da teia de aranha, no seu cotovelo. É verdade que em 2020 até existem pessoas convencionais e conservadoras, que têm tatuagens do género, mas é importante realçar que nos encontramos em 2004. A estética vigente era muito diferente há 16 anos atrás e tais tatuagens não eram comuns no dia-a-dia.
  • É possível que esta capa nos remeta para o imaginário de uma urbe desertificada, iluminada apenas por um simples poste de luz que, de uma forma relevante, simboliza a importância deste acontecimento.

No álbum “Rock Radioactivo” (EMI, 1990), os Mata-Ratos apresentam-nos os “Ratos”:

Eles são os generais / (…) / Eles são os politicos / (…) / Eles são os patroes

Eles são os ratos
Que nos enganam
E nos massacram

Porquê encontro uma relação entre esta música do primeiro álbum e o capa do quarto disco dos Mata-Ratos? Por um simples, mas muito importante, elemento: há um rato que se encontra conectado à cabeça do tipo que, provavelmente, está a levar na boca.

A política inerente ao movimento punk e skinhead trojan representa, de uma forma generalizada, libertade para todos e opressão para os “ratos”. Claro que existem cismas, e pontuais excepções, dentro deste movimento e terei todo o gosto em discuti-las, noutra ocasião. Se abordamos este tema agora, chegaremos à leitura do capítulo I só no final desta pandemia.

Assim sendo, podemos interpetar a acção de golper, por parte dos dois personagens (a chelsea skin e o punk), como uma correcção de uma opressão sistémica. O terceiro sujeito representa assim o “sistema”, encarnando os “generais”, “políticos” e “patrões”.

A ameaça, e a consequente porrada, é assim justificada pelo Paradoxo da Tolerância de Karl Popper: a tolerância ilimitada, de uma forma paradoxal, levará a um consequente desaparecimento da mesma. Os intolerantes aproveitam-se desta forma da tolerância dos demais, chegando ao poder sem qualquer tipo de ética ou escrúpulos, e, quando tal acontecimento se materializa, existirá uma consequente eliminação de todos os tolerantes.

Esta é, na verdade, política pura mas que também pode ser aplicada nas nossas vivências do dia-a-dia.

Para os mais atentos, existem ainda dois easter eggs neste capítulo. O primeiro seria o tema “Leis de Merda” (Alarm! Records, 1999), mítico malha de abertura do terceiro álbum dos Mata-Ratos, “Sente o Ódio”.

E, o segundo easter egg, é uma referência ao disco “Novos Hinos da Mocidade Portuguesa” (Rastilho Records, 2007).

Por último, antes de avançar para a leitura, é crucial realçar que o capítulo é narrado do ponto de vista do gajo que está a levar no focinho.


Now what?

Este é o primeiro capítulo do livro e estou ainda a ajustar e moldar a forma como seguir-se-ão os restantes. Deixa-me comentar-te que a introdução acabou por ser mais longa que o primeiro capítulo. Isto deve-se ao facto que, na minha humilde opinião, o contexto e explicação destes pequenos contos são uma parte inerente e crucial do livro.

A meu ver, no equilibrio geral das coisas, a contextualização encontra o mesmo grau de importância que os capítulos. Um não pode co-existir sem o outro, de forma a prevalecer um total entedimento da escrita “mata-ratiana”.

Encontrarão em seguida a música e o conteúdo lírico do tema “És um homem ou és um rato?”. Para quem já conhece de trás para a frente a malha e a letra, poderá saltar directamente para o CAPÍTULO I.


Música “És um homem ou és um rato?”


Letra “És um homem ou és um rato?”

Boca sempre aberta
E só para o batimento
Quando chega a hora
Borras-te de medo
Contas mil histórias
Dominas o jogo
O primeiro a fugir
Se a tenda pega fogo

És um homem ou és um rato?
E só tua a cabeça que eu parto
És um homem ou és um rato
Das tuas tangas já estamos fartos

Boca sempre aberta
Pareces um jumento
Quando cai a merda
Foges como vento
Entram mil moscas
Saem tantas ilusões
Que tratas de esquecer
Se te apertam os colhões

Já basta de histórias
Não te venhas cá bater
Com todas essas tangas
Quem pensas convencer
Não passas de um rato
Sou tua ratoeira
Rebento-te a cabeça
Com a puta da cadeira

Boca estava aberta
Foi fechada com cimento
Perdes-te o teu trono
Não és rei do batimento
Agora não tens lábia
As tangas vão acabar
Se voltas a piar
Os dentes vais vomitar


CAPÍTULO I – “És um homem ou és um rato?”

Odeio esta cidade.

As paredes imundas que me circundam e o cheiro fétido deste lugar fazem que com o âmago do meu estômago se contorça enquanto arranjo forças para cravar uns trocos, perto da calheta de um largo perdido em Lisboa.

Por aqui, nada acontece.

Esta prévia mocidade portuguesa nada tem a acrescentar às novas gerações que surgem, apáticas por uma liberdade que nunca conheceram até aos dias de hoje.

Enquanto caminho só, passam por mim demasiados desconhecidos que me ignoram. Malditos escravos. São todos iguais.

Encosto-me numa esquina e, ao sacar um cigarro, olho nos olhos um vulto. És apenas mais um. Lanço um ar de indiferença e despeito ao que, apesar de se encontrar longe, é-me respondido: “Ó tu que fumas…”.

Incrível, mesmo saído de uma comédia portuguesa da década de 40. Viro-me e, ao encarar-lhe o rosto, o que mais se realça é um dente podre e que em tudo salienta a cara feia deste sujeito de crista.

“O que foi caralho?”, gritei-lhe.

Mal disse isto, foi-me espetado um valente murro na cara. E não é que afinal o punk não estava sozinho?

Para dizer a verdade, mal tive tempo para ver a beleza da gaja ou a cor da camisa Fred Perry que vestia, pois foi dela que levei o meu primeiro, de muitos, pontapés na fuça. E foi assim que me apercebi que aqui não existem leis. E as que existem, são uma merda.

E quando me partiram a cabeça, deixaram-me ao abandono. Ao cuspirem-me na cara, ainda se deram ao desplante de me perguntar:

“Afinal, és um homem ou és um rato?”.

Filhos da puta.

Fim.


Publicarei cada conto uma vez por semana no Portugarte, à sexta-feira, em honra à música Bezana Ska, onde o pessoal sai precisamente nesse dia para embededar-se e divertir-se.

A ideia deste livro é precisamente esta. Criar uma bebedeira colectiva literária, onde somos imergidos pelo álcool das boémias palavras e música dos Mata-Ratos. Vemo-nos na tasca! Até breve amigos!


Sugestões, caricas, cartas de amor ou de “sentir o ódio”? É escrever-me!

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Etiquetas: , , , , Last modified: Julho 3, 2020