Há projetos que nunca chegam a ver a luz do dia. Nunca são paridos, por assim dizer. As causas podem ser muitas. Desinteresse do mercado, falta de entendimento entre o artista e a audiência, desleixo do criador, falta de devidos espaços para a performance da arte, etc. A lista é interminável e as explicações imprevisíveis.
Tenho muitas coisas que me arrependo nesta vida. Ao lado destas, acompanha-me o orgulho de ter concretizado projetos que me foram deveras importantes. De forma orgulhosa mas sempre humilde, emociona-me sempre que alguém, de quando em vez, surge alguém na minha vida e, de uma forma positiva e construtiva, comenta-me o impacto/influência que a minha arte teve nessa pessoa.
Mas claro que nem tudo é um mar de rosas. Assumo o mea culpa em projetos que não foram concretizados como esperava ou que até falharam redondamente. Há um sentimento de culpa que me persegue e corrói quando a arte não saiu como esperava ou que não se possam ter superado alguns imprevistos que ocorreram nos momento mais delicados e inesperados.
É curioso como funciona a mente humana. Ao fim ao cabo, não sinto o mesmo nível que satisfação e alegria quando me vem à mente a minha arte exitosa em comparação às tentativas fracassadas do meu passado. Claro que foram esses erros que me moldaram a ser a pessoa que sou hoje mas o ser humano está condenado a um perpétuo sentimento: a insatisfação.
E é com esta pequena grande introdução (porque não o sei fazer de outra forma), que te apresento um projecto que não falhou nem teve êxito. Simplesmente… Nunca o foi. Nunca aconteceu. Nunca foi materializado.
Mata-Ratos e Rastilho
Há já meia década que vivo na América Latina e, aquando do início da minha migração, falei com o Miguel Newton (Mata-Ratos) e o Pedro Vindeirinho (Rastilho Records) sobre a possibilidade de editar um livro em conjunto com a “Banda Sonora Do Apocalipse Anunciado” (2016), ou seja, o quinto álbum desta já veterana e reconhecida banda. O interesse entre as três partes era mútuo mas, acredito eu profundamente, que para materializar a arte e o sonho é necessário estar presente. É necessário estar com as pessoas. Ainda que a digitalização tenha facilitado a nossa vida contemporânea, a criação da arte surge muitas vezes através da cooperação e, infelizmente, o distanciamento físico traduz-se num distanciamento real.
Assim sendo, a comunicação entre a minha pessoa, o Miguel e o Pedro acabou por distanciar-se até ao ponto que o projeto acabou por ficar para trás. Por ser esquecido. Por ser finalmente… Engavetado.
Emigração e América Latina
Tudo isto aconteceu algumas semanas depois depois de ir-me de Portugal, da edição do livro “Vida Suburbana” (Associação Burra de Milho, 2015) e do óbvio recomeço, desde o zero, da minha vida no estado de São Paulo.
Fast forward, passados 5 anos, chegamos a 2020. Vivo na Argentina e aceito finalmente a minha pessoa. Por mais que queira, ou que tenha tentado no passado, não há forma de distanciar-me do mundo da arte ou da cultura. Enraizou-se no meu ser. O que sempre soube acabou apenas por revelar-se, uma vez mais.
Muito resumidamente, “The leopard cannot change its spots”.
De forma a saciar a fome deste monstro cultural que coexiste com a minha pessoa, criei o Portugarte. E estou feliz de fazer o que faço. É algo simples, humilde mas muito true. Para a minha pessoa, é genuíno. E isso chega-me.
Acabei por arrancar com o projeto e veio-me à memória os textos que outrora escrevi. De um possível livro que outrora foi. Pus-me a vasculhar pelo meu passado e encontrei os contos.
Eram 33 contos, que representavam cada um dos anos da banda dos Mata-Ratos, fundados em 1982. A narrativa não é fácil, admito. A ideia foi dar vida aos personagens criados pela banda, ao longo destas três décadas de existência. Temos o Xavier, Zurilho Pascoal, a famosa sogra, a Cabra da Montanha, entre outros.
E assim, tal como o Frankenstein e o seu monstro, também fui o responsável pela criação de vida destes personagens. Dei-lhes pensamentos. Criei uma narrativa, escrevendo pequenos contos (entre 400 a 3000 caracteres, dependendo do capítulo), onde os referidos relatam uma experiência baseada nas canções dos Mata-Ratos.
Como funciona o livro?
Cada capítulo é narrado de forma independente, sempre na primeira pessoa de um diferente personagem. Existe fio condutor que, aos poucos, é criado entre os diferentes 33 contos. Por fim, é dado um sentido comum a todos.
Ou seja, entre as diferentes histórias há um universo “mata-ratiano”, que é descortinado de forma lenta mas coesa, a meu ver. É inevitável estabelecer um paralelismo e influência literária com o turco Orhan Pamuk (“O Meu Nome é Vermelho”, 1998) onde o mesmo acontecimento é narrado por diferentes personagens, em cada capítulo. Neste caso, no “Cães de Cristo” (o então título do livro, que foi o primeiro nome dos Mata-Ratos), cada acontecimento é um mundo por si só e os personagens vivem todos no mesmo universo, embora em espaços distintos.
Não quis limitar-te a um só género de narrativo. Cada capítulo é único por si só. Admito que a leitura, ao início, possa ser um pouco confusa e difícil de interpretar. Mas, aos poucos, vai-se entranhando. Tal como a música dos Mata-Ratos, há escritos agressivos, sexuais, outros divertidos, sarcásticos e até ironias que, à primeira impressão, possam fazer pouco sentido.
Escolhi assim escrever textos “comuns”, passando por poesia, manifestos, telegramas, entre outras metamorfoses musico-literárias.
Gosto muito da ideia de um universo literário. E ainda mais, de um universo literário punk.
Punk, tese de mestrado e um outro livro musical
Tal como qualquer punk português, também cresci com os Mata-Ratos. Desde 1998, tinha os meus 13 anitos, e ia ver as bandas locais dos Açores que tocavam covers dos Mata-Ratos. Acabei por organizar o primeiro festival punk dos Açores, o Festival Acção Directa, em 2004 e foi a primeira vez que a banda foi tocar ao arquipélago. Em 2009, convidei o vocalista Miguel Newton a ser o orientador da minha tese de mestrado de Estudos Artístico, na vertente de Estudos Musicais. Ele aceitou e acabou por surgir a primeira tese de mestrado sobre o punk português, “A Importância do Punk em Portugal”. Esta tese viria a transformar-se no primeiro livro sobre o movimento punk português, “Vida Suburbana” (Associação Burra de Milho, 2015).
Claro que é muito lindo e fácil dizer o “primeiro isto” ou “aquilo” mas tudo o que enuncio foi um árduo trabalho em cooperação com várias pessoas. Eu sozinho, por si só, tal como qualquer outra pessoa comum, não posso criar um mundo. Este é fruto do trabalho entre lindas diversas pessoas que nos acompanham ao longo dos tempos. E os meus projetos não são nenhuma excepção.
E então o ciclo completa-se.
Onde e quando posso ler o livro?
Apresento-vos o livro “Cães de Cristo”. Para ajudar um pouco à compreensão de cada capítulo, decidi incluir uma pequena explicação sobre o contexto onde o personagem se encontra, a música na qual o capítulo foi baseado e a respectiva letra. O livro conta com 33 capítulos porque, em 2015, esse foi número de anos da banda. Aviso que, tal como as letras dos Mata-Ratos, algumas partes dos textos possam parecer “vulgares” e pouco indecentes. Mas para quem conhece o grupo, e principalmente o seu conteúdo lírico, isto não é nada de novo.
Publicarei cada conto uma vez por semana no Portugarte, à sexta-feira, em honra à música Bezana Ska, onde o pessoal sai precisamente nesse dia para embededar-se e divertir-se. A ideia deste livro é precisamente esta. Criar uma bebedeira colectiva literária, onde somos imergidos pelo álcool das boémias palavras e música dos Mata-Ratos.
Vemo-nos na tasca! Até breve amigos!
Um abraço,
Paulo